sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Nas raízes do egoísmo

Podemos ter em breve a notícia da primeira morte em função da greve dos caminhoneiros. Sem condições de atender, por falta de medicamentos entre outras dificuldades, hospitais do Oeste de Santa Catarina já diminuem a sua atuação e podem parar de receber pacientes nas próximas horas ou dias. Nos supermercados falta comida. Nos postos de combustíveis não há gasolina – e cidades inteiras deixam de funcionar.

Aqui cabe um momento de reflexão meu, que sempre defendi as greves mesmo com os danos que elas naturalmente precisam causar. Quantas discussões tive com pessoas que achavam o maior cúmulo de suas vidas ter menos ônibus circulando, passar mais tempo no trânsito ou deixar de ter um dia de aula devido a uma manifestação. O leitor pode se questionar por que diabos desta vez eu sou contra. Excelente questão. Pr’além do exposto no primeiro parágrafo, que já me faria questionar qualquer luta que eu fizesse parte, me dói a razão de profundo egoísmo que gera as tais manifestações. 

Não vou entrar no mérito que a profissão de caminhoneiro (mesmo com diesel alto e frete defasado) é uma das mais bem remuneradas no país, especialmente neste nível de escolaridade. Sou filho de um profissional desta área e sei que ninguém passa fome com ela – muito, mas muito longe disso. O pai sempre comentou de maneira orgulhosa que se quisessem eles poderiam parar o país. Só que a questão já deixou o âmbito dos caminhoneiros, que é uma classe que tem sim muito a reclamar, pois é forçada por seus patrões a não dormir enquanto circulam dia e noite em rodovias horrorosas.

Tal qual em junho de treze (mudando apenas o estopim), uma parcela imponente, audaciosa e conhecida da população toma para si uma luta e a conduz para os caminhos que deseja. Parte esta notoriamente apoiada – e/ou direcionada e financiada – pelo empresariado e setores historicamente ligados ao capital. Esta minoria, que perdeu nas urnas em 26 de outubro, retorna na busca de um terceiro turno. Não importa o que digam, eles querem mudar o executivo federal de qualquer maneira, por qualquer justificativa. É preciso aceitar que o PT venceu, tem mais quatro anos de um governo recentemente desastroso e que não existe base legal para um impeachment.

Os únicos julgamentos do caso Petrobras até agora são da imprensa e da população. As únicas provas de envolvimento da Presidente Dilma Rousseff no “Petrolão” são as asneiras profusas nos grupos de WhatsApp. O impeachment não tem como acontecer – pelo menos por enquanto. Neste meio tempo, vemos nas ruas um misto de mau-caratismo, ingenuidade e egoísmo que tem o poder de matar pessoas. Mas, afinal: “Que matem os índios, que morram os doentes, que atirem nos favelados – só não aumentem o preço da minha gasolina,” berra um senso-comum brasileiro zumbi de consciência.

Kadu Reis

(Este texto representa única e exclusivamente a opinião pessoal do autor)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Uma história de amargar

Alexandre Magno acorda e não sabe que horas são – até porque isso é algo que não interessa mais. Viciado em drogas, ele está há dias em um de seus apartamentos, em Pinheiros, São Paulo. Ao seu redor a sexta maior cidade do planeta não para um só segundo, mas ele não está no mesmo ritmo. Para quem um dia possuiu apenas uma bicicleta e um apartamento na periferia, Alexandre descobriu aos 42 anos que nem todo o dinheiro e fama bastam. É fim de festa.

Enquanto isso, na mais paulista das avenidas, Kleber Atalla, um motorista particular e comerciante de 51 anos, acelera sua moto CB1000R, um sonho de consumo de qualquer fã da categoria naked – estilo de motocicletas esportivas. “Como estou, onde estou e onde quero chegar?” são perguntas que hoje em dia o cinquentão sabe responder. Há duas décadas livre da cocaína, o Tiozão, como é mais conhecido, já esteve no fundo do poço, mas hoje vive normalmente. Kleber filma seu dia a dia sobre duas rodas e coloca os vídeos no Youtube – é um motofilmador, o maior da atualidade. Um sucesso absoluto, com mais de 45 milhões de visualizações e fama instantânea.

Na Zona Oeste da cidade, entre alucinações e fragmentos da realidade, Alexandre tenta buscar um novo rumo, romper a sombra da própria loucura. O vício compulsivo por drogas já dura oito anos, e se agravou nos últimos 18 meses. Sentir-se bem é algo bastante raro. Separado da esposa e, por acaso, sem compromissos profissionais momentâneos, o músico, cineasta, poeta, roteirista e empresário está há dias sem ao menos ir até a rua, ou comer. A cerveja e o pó são tudo o que resta.

Atalla chega em seu escritório, na Barra Funda. Liga para seu patrão (faz questão de chamá-lo assim), que não o atende, e prossegue a rotina. Ele vende acessórios para motocicletas, que são sua grande paixão. Com a cabeça erguida e mantendo a fé em Deus, Kleber vê seu negócio crescendo – e as horas do dia passando. Sintonia, telepatia, algo diz ao Tiozão que as coisas não vão bem. O dia de luta acaba e às 18h ele monta na Kátia Flávia (a moto tem nome), liga sua câmera GoPro que fica sobre o capacete, e filma o caminho para casa.

O corpo de Alexandre não aguenta mais. O cantor sempre disse que o vício não era sério. Todos os outros discordam. Sua esposa, Graziela Gonçalves, não suportou a rotina da droga e exigiu separação. Não cansada de tentar de novo, ela achou que a distância ajudaria ele a entender que o problema estava fora de seu alcance.  Não adiantou. A depressão não o deixou viver. Em uma das piores condições que o ser humano pode atingir, deitado no chão da cozinha divagando, ele perdeu para o vício. Não se sabe a hora exata, mas a droga venceu. Mais um impotente diante da química poderosa, devastadora.

Em sua casa, Tiozão não coloca no ar todos os vídeos do dia. A alegria e o bordão “Salve salve gatinha, salve salve rapaziada, tá piscando, tá gravando” ficam um pouco de lado, dando espaço à tensão. Atalla sabia que alguém iria estragar seu dia. Tenta telefonar para seu patrão mais uma vez, querendo ouvir apenas uma palavra amiga ou uma notícia boa, mas novamente é ignorado. Kleber vai dormir, pois é terça-feira, e a semana é longa.

Ainda não são 5h da manhã. Tiozão não consegue mais dormir. Como se o silêncio dissesse tudo, a sensação de caos é gritante. Ele não aguenta mais. Levanta, telefona para Victor Augusto Mehl, que também é funcionário do patrão, e junto com ele vai até o apartamento em Pinheiros. Kleber sobe, abre a porta, e após algum tempo de procura encontra o corpo sem vida atirado ao chão. “Meu patrão está morto, o Chorão está morto”.

Antes de qualquer outro, o Tiozão teve que encarar a realidade. O grande amigo de Chorão sofreu antes dos familiares, dos outros amigos e dos milhões de fãs. O músico atingiu a todos através da sua ausência com a mesma intensidade de suas letras. O poeta urbano deixou um filho, 11 álbuns, centenas de composições e um legado. Sem o Marginal Alado, a música e o skate brasileiro ficaram órfãos.

Em poucos segundos, Kleber teve de agir, acionar a polícia e transmitir a notícia que tomaria conta do Brasil em algumas horas. De alento, uma última mensagem deixada por Chorão. Ele se libertou. Fez o que precisava fazer, e o que havia avisado que faria. “Fiz essa canção pra dizer algumas coisas. Cuidado com o destino, ele brinca com as pessoas. Tipo uma foto com sorriso inocente, mas a vida tinha um plano e separou a gente. (...) A vontade de te ver já é maior que tudo e não existem distâncias no meu novo mundo”.

Ele dizia Charlie, nós sempre diremos Brown.


Kadu Reis